ULURU - AUSTRÁLIA
"Aí está, a grande escuridão que envolve a humanidade”. Teru e Kazu buscavam refúgio aos pés da maior rocha do mundo, sentados em volta de uma pequena luz que pulsava no coração do continente australiano. O crepitar da fogueira atormentava o silêncio do deserto, despertando as dúvidas que tentavam se ocultar sob o véu da noite. E a chama dessa fogueira, que queimava sobre a terra do tempo dos sonhos, tentava iluminar a ignorância humana. Em vão.
O Uluru é um imenso monólito, que se ergue dramaticamente a mais de 300 metros do solo desértico. Uma montanha formada por uma única pedra. Para os aborígines, que habitam os seus arredores há mais de 200 mil anos, o Uluru é muito mais do que um simples gigante de pedra.
— Amanhã escalaremos a maior pedra do mundo. Conquistaremos a Ayers Rock – Kazu proclamou, com ar de quem quer se vingar de uma derrota.
— Não podemos! E o nome verdadeiro é Uluru, uma montanha proibida, uma montanha sagrada. Não podemos desrespeitar a fé dos aborígenes.
Teru explicou que escalar o Uluru significava violar o Tjukurpa. Significava quebrar uma lei que não estava simplesmente escrita nos livros, mas gravada na alma dos aborígines. Segundo o Tjukurpa, o mundo existia sem nenhuma característica, até que heróis gigantes se ergueram das planícies estéreis e iniciaram o Dreamtime, o tempo dos sonhos. Estes gigantes caminhavam pela terra, acampando, caçando, fazendo fogo, dançando. Enfim, vivendo. Até que um dia eles se cansaram e pararam de fazer essas coisas. O tempo dos sonhos chegou ao fim e os aborígines surgiram para continuar o que havia sido iniciado pelos gigantes. “Assim como era feito no Tempo dos Sonhos, assim deve ser feito hoje”.
— E os gigantes não escalavam montanhas? – ironizou Kazu.
Teru ignorou o comentário e prosseguiu. Seus olhos em chamas refletiam a luz da fogueira.
— Os lugares em que os criadores gigantes estiveram ativos estão marcados por acidentes geográficos, como rochas, cavernas, lagos e montanhas. Lugares sagrados como o Uluru, onde uma parte do espírito desses gigantes ainda vive...
— E você acredita nessa religião primitiva?
— Em uma época em que os homens se reuniam em volta de fogueiras, eles aprenderam a compartilhar histórias, para tentar preencher o vazio da noite. É só o que eu estou fazendo...
— Lendas como essa só serviam para tentar explicar o que o homem não compreendia naquela época. O homem criou todas essas mentiras, porque não conhecia a verdade e não suportava viver na dúvida. Mas hoje sabemos que toda a paisagem que nos cerca é apenas o resultado de uma série de fatores geológicos, climáticos e...
— E você estava aqui para ver tudo isso acontecer? – Teru interrompeu.
Kazu não respondeu, apenas se levantou, afastando-se da fogueira.
— Eu só tenho uma certeza. Amanhã escalarei o Uluru – ele disse, fechando o zíper de sua barraca.
Teru lamentou. Era impossível mudar a opinião do irmão. Sendo assim, não lhe restou mais nada além de se entregar ao tempo dos sonhos, onde tudo era possível.
**
Sete pessoas formavam um círculo em volta de uma fogueira. Elas conversavam alegremente, até que um vento forte soprou e apagou o fogo. Tudo mergulhou em trevas. Depois veio o silêncio, seguido de uma voz:
— Suba a montanha e terá um encontro com a morte.
— Quem é você?
— Escute uma das sete pessoas e encontrará a verdade.
— Quem eu devo escutar?
A fogueira se acendeu, afastando a escuridão. E tudo virou luz.
**
Teru acordou suado. Teve um sonho estranho com sete pessoas ao redor de uma fogueira. Teria algum significado? Ele lutou por um longo tempo até conseguir dormir de novo. Sonhou muitas outras coisas, mas apenas aquele sonho ficou gravado em sua memória. “Escute uma das sete pessoas”.
Os sonhos acabaram, era hora de despertar. Os gêmeos caminharam em direção ao Uluru. Nuvens negras cobriam a face da Austrália. Não demorou muito para que o céu chorasse. Chuva no deserto. O pó vermelho se transformou em líquido escarlate e logo toda a planície estava coberta pelo sangue da terra. Tempestade no deserto.
Os 700 milhões de anos do Uluru estavam diante dos 25 anos de cada um dos gêmeos. Kazu ergueu o rosto coberto pela água da tempestade e viu cachoeiras imensas, rolando como lágrimas nas feridas do Uluru. Para os aborígines, as fendas e escarpas do Uluru eram cicatrizes formadas durante o tempo dos sonhos. Eram testemunhas da luta dos gigantes.
— Você não pode escalar o Uluru com essa tempestade! Está ventando muito! – gritou Teru, protegendo o rosto das rajadas de água.
— Eu sei – gritou Kazu.
Teru olhou para o rosto do irmão. Havia um semblante de respeito em seu rosto. Talvez fosse o poder da tempestade ou...
— O que você está fazendo?
— Estou pegando uma pedra, para me lembrar deste dia. Para me lembrar de que nem sempre eu posso chegar onde eu quero – respondeu Kazu.
— Não! Muitos foram os que levaram as pedras do Uluru para casa e sofreram com a maldição – Teru gritava, tentando vencer os trovões. – Os aborígines não permitem que as pedras sejam roubadas deste solo sagrado. Deixe a pedra onde ela pertence!
Kazu olhou para o irmão. Ele não acreditava em coisas como sorte ou azar. Mas, de alguma forma, sentiu que deveria respeitar a montanha. Não era por religião, não era por medo da maldição. Era outra coisa que ele não conseguia explicar. Teru percebeu que algo começava a mudar, não apenas no rosto, mas também no coração do irmão.
Kazu abaixou e depositou delicadamente a pedra no local de onde a havia tirado. Naquele dia, ele não conquistou, foi conquistado pelo Uluru. Teru olhou com orgulho para o irmão. Para ele, Kazu havia conquistado algo muito maior do que a maior pedra do mundo.
Os olhos dos gêmeos estavam presos ao Uluru, que parecia um gigante adormecido no leito da eternidade. As cachoeiras rolando em suas fendas eram como veias pulsantes da fé milenar dos aborígines. Uma incrível força parecia emanar daquele solitário ser pétreo, como se ele realmente tivesse alma.
— Vocês só podem ver a ponta de algo muito maior...
Teru e Kazu levaram um susto tremendo. Nunca imaginariam que poderia haver outra pessoa naquele lugar, debaixo daquele tempo horrível. O estranho sorriu.
— Mas eu acho que vocês já sabiam disso – ele gritou, antes de desaparecer na tempestade.
Os irmãos se entreolharam. Debaixo da superfície, ocultava-se a maior parte do Uluru. Apenas um terço da montanha está visível. Talvez esta fosse a verdade sobre tudo o que se pode ver neste mundo. Deveria existir algo muito maior, invisível aos olhos, mas, mesmo assim, real. Era este algo maior que Teru queria que Kazu desenterrasse de dentro de si. Um algo maior que só pode ser visto com os olhos da fé.
**
Retornando à “civilização”, os gêmeos se depararam com um aborígine deitado, nos arredores da poeirenta Alice Springs. Às margens de um rio seco, ele estava inerte, caído ao chão de uma cidade que brotou no solo desértico do Centro Vermelho. Parecia sem vida. Seu rosto enrugado exibia marcas profundas, que pareciam ter sido entalhadas pela dor. Talvez até estivesse morto, porque o seu corpo já parecia ter sido consumido pelo sol do desespero. Ele segurava uma garrafa vazia em uma de suas grotescas mãos. Kazu sacou a câmera e a apontou para aquela cena deprimente. Teru colocou a mão na frente da objetiva e o censurou:
— Está louco? Você não sabe que os aborígines não permitem que tirem foto deles? Eles acreditam que as fotos roubam as suas almas...
O aborígine acordou, viu a câmera na mão de Kazu e balbuciou algumas palavras em inglês:
— Dê dinheiro. Tira foto...
— Mas... Não tem medo de perder a sua alma? – Teru perguntou, espantado.
— Já vendi minha alma... há muito tempo...
O aborígine jogou a garrafa vazia, que se despedaçou em uma pedra. Lágrimas nos olhos. Suspiro profundo. Aquele homem repetiu dolorosamente:
— Perdi meu espírito...
Os olhos do aborígine estavam assustadoramente vazios, como se ele ainda pudesse ver, mas não enxergar. Teru fugiu daqueles olhos. Kazu deu algum dinheiro, mas não tirou a foto. Não teve coragem de aprisionar o que havia restado da morada de um espírito perdido. O tempo dos sonhos havia acabado.
O Uluru é um imenso monólito, que se ergue dramaticamente a mais de 300 metros do solo desértico. Uma montanha formada por uma única pedra. Para os aborígines, que habitam os seus arredores há mais de 200 mil anos, o Uluru é muito mais do que um simples gigante de pedra.
— Amanhã escalaremos a maior pedra do mundo. Conquistaremos a Ayers Rock – Kazu proclamou, com ar de quem quer se vingar de uma derrota.
— Não podemos! E o nome verdadeiro é Uluru, uma montanha proibida, uma montanha sagrada. Não podemos desrespeitar a fé dos aborígenes.
Teru explicou que escalar o Uluru significava violar o Tjukurpa. Significava quebrar uma lei que não estava simplesmente escrita nos livros, mas gravada na alma dos aborígines. Segundo o Tjukurpa, o mundo existia sem nenhuma característica, até que heróis gigantes se ergueram das planícies estéreis e iniciaram o Dreamtime, o tempo dos sonhos. Estes gigantes caminhavam pela terra, acampando, caçando, fazendo fogo, dançando. Enfim, vivendo. Até que um dia eles se cansaram e pararam de fazer essas coisas. O tempo dos sonhos chegou ao fim e os aborígines surgiram para continuar o que havia sido iniciado pelos gigantes. “Assim como era feito no Tempo dos Sonhos, assim deve ser feito hoje”.
— E os gigantes não escalavam montanhas? – ironizou Kazu.
Teru ignorou o comentário e prosseguiu. Seus olhos em chamas refletiam a luz da fogueira.
— Os lugares em que os criadores gigantes estiveram ativos estão marcados por acidentes geográficos, como rochas, cavernas, lagos e montanhas. Lugares sagrados como o Uluru, onde uma parte do espírito desses gigantes ainda vive...
— E você acredita nessa religião primitiva?
— Em uma época em que os homens se reuniam em volta de fogueiras, eles aprenderam a compartilhar histórias, para tentar preencher o vazio da noite. É só o que eu estou fazendo...
— Lendas como essa só serviam para tentar explicar o que o homem não compreendia naquela época. O homem criou todas essas mentiras, porque não conhecia a verdade e não suportava viver na dúvida. Mas hoje sabemos que toda a paisagem que nos cerca é apenas o resultado de uma série de fatores geológicos, climáticos e...
— E você estava aqui para ver tudo isso acontecer? – Teru interrompeu.
Kazu não respondeu, apenas se levantou, afastando-se da fogueira.
— Eu só tenho uma certeza. Amanhã escalarei o Uluru – ele disse, fechando o zíper de sua barraca.
Teru lamentou. Era impossível mudar a opinião do irmão. Sendo assim, não lhe restou mais nada além de se entregar ao tempo dos sonhos, onde tudo era possível.
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Sete pessoas formavam um círculo em volta de uma fogueira. Elas conversavam alegremente, até que um vento forte soprou e apagou o fogo. Tudo mergulhou em trevas. Depois veio o silêncio, seguido de uma voz:
— Suba a montanha e terá um encontro com a morte.
— Quem é você?
— Escute uma das sete pessoas e encontrará a verdade.
— Quem eu devo escutar?
A fogueira se acendeu, afastando a escuridão. E tudo virou luz.
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Teru acordou suado. Teve um sonho estranho com sete pessoas ao redor de uma fogueira. Teria algum significado? Ele lutou por um longo tempo até conseguir dormir de novo. Sonhou muitas outras coisas, mas apenas aquele sonho ficou gravado em sua memória. “Escute uma das sete pessoas”.
Os sonhos acabaram, era hora de despertar. Os gêmeos caminharam em direção ao Uluru. Nuvens negras cobriam a face da Austrália. Não demorou muito para que o céu chorasse. Chuva no deserto. O pó vermelho se transformou em líquido escarlate e logo toda a planície estava coberta pelo sangue da terra. Tempestade no deserto.
Os 700 milhões de anos do Uluru estavam diante dos 25 anos de cada um dos gêmeos. Kazu ergueu o rosto coberto pela água da tempestade e viu cachoeiras imensas, rolando como lágrimas nas feridas do Uluru. Para os aborígines, as fendas e escarpas do Uluru eram cicatrizes formadas durante o tempo dos sonhos. Eram testemunhas da luta dos gigantes.
— Você não pode escalar o Uluru com essa tempestade! Está ventando muito! – gritou Teru, protegendo o rosto das rajadas de água.
— Eu sei – gritou Kazu.
Teru olhou para o rosto do irmão. Havia um semblante de respeito em seu rosto. Talvez fosse o poder da tempestade ou...
— O que você está fazendo?
— Estou pegando uma pedra, para me lembrar deste dia. Para me lembrar de que nem sempre eu posso chegar onde eu quero – respondeu Kazu.
— Não! Muitos foram os que levaram as pedras do Uluru para casa e sofreram com a maldição – Teru gritava, tentando vencer os trovões. – Os aborígines não permitem que as pedras sejam roubadas deste solo sagrado. Deixe a pedra onde ela pertence!
Kazu olhou para o irmão. Ele não acreditava em coisas como sorte ou azar. Mas, de alguma forma, sentiu que deveria respeitar a montanha. Não era por religião, não era por medo da maldição. Era outra coisa que ele não conseguia explicar. Teru percebeu que algo começava a mudar, não apenas no rosto, mas também no coração do irmão.
Kazu abaixou e depositou delicadamente a pedra no local de onde a havia tirado. Naquele dia, ele não conquistou, foi conquistado pelo Uluru. Teru olhou com orgulho para o irmão. Para ele, Kazu havia conquistado algo muito maior do que a maior pedra do mundo.
Os olhos dos gêmeos estavam presos ao Uluru, que parecia um gigante adormecido no leito da eternidade. As cachoeiras rolando em suas fendas eram como veias pulsantes da fé milenar dos aborígines. Uma incrível força parecia emanar daquele solitário ser pétreo, como se ele realmente tivesse alma.
— Vocês só podem ver a ponta de algo muito maior...
Teru e Kazu levaram um susto tremendo. Nunca imaginariam que poderia haver outra pessoa naquele lugar, debaixo daquele tempo horrível. O estranho sorriu.
— Mas eu acho que vocês já sabiam disso – ele gritou, antes de desaparecer na tempestade.
Os irmãos se entreolharam. Debaixo da superfície, ocultava-se a maior parte do Uluru. Apenas um terço da montanha está visível. Talvez esta fosse a verdade sobre tudo o que se pode ver neste mundo. Deveria existir algo muito maior, invisível aos olhos, mas, mesmo assim, real. Era este algo maior que Teru queria que Kazu desenterrasse de dentro de si. Um algo maior que só pode ser visto com os olhos da fé.
**
Retornando à “civilização”, os gêmeos se depararam com um aborígine deitado, nos arredores da poeirenta Alice Springs. Às margens de um rio seco, ele estava inerte, caído ao chão de uma cidade que brotou no solo desértico do Centro Vermelho. Parecia sem vida. Seu rosto enrugado exibia marcas profundas, que pareciam ter sido entalhadas pela dor. Talvez até estivesse morto, porque o seu corpo já parecia ter sido consumido pelo sol do desespero. Ele segurava uma garrafa vazia em uma de suas grotescas mãos. Kazu sacou a câmera e a apontou para aquela cena deprimente. Teru colocou a mão na frente da objetiva e o censurou:
— Está louco? Você não sabe que os aborígines não permitem que tirem foto deles? Eles acreditam que as fotos roubam as suas almas...
O aborígine acordou, viu a câmera na mão de Kazu e balbuciou algumas palavras em inglês:
— Dê dinheiro. Tira foto...
— Mas... Não tem medo de perder a sua alma? – Teru perguntou, espantado.
— Já vendi minha alma... há muito tempo...
O aborígine jogou a garrafa vazia, que se despedaçou em uma pedra. Lágrimas nos olhos. Suspiro profundo. Aquele homem repetiu dolorosamente:
— Perdi meu espírito...
Os olhos do aborígine estavam assustadoramente vazios, como se ele ainda pudesse ver, mas não enxergar. Teru fugiu daqueles olhos. Kazu deu algum dinheiro, mas não tirou a foto. Não teve coragem de aprisionar o que havia restado da morada de um espírito perdido. O tempo dos sonhos havia acabado.